Combater os altos índices de substâncias tóxicas presentes no ar é para São Paulo um desafio comparável a despoluir o Rio Tietê ou acabar com os congestionamentos de trânsito: especialistas sabem que nem os maiores esforços resolverão totalmente o problema. Ainda assim, levar mais a sério a batalha para melhorar o ar que respiramos é uma questão crucial de saúde pública. Hoje, mesmo os paulistanos que permanecem em casa, e não são expostos diretamente à sujeira lançada pelos escapamentos dos automóveis, inalam, a cada dia, uma quantidade de poluentes comparável à de um cigarro fumado até o filtro. Quem amarga com o tráfego lento e intenso está em condições ainda piores. A cada hora gasta no trânsito, é como se a pessoa tragasse outro cigarro. Ou seja, três horas num congestionamento, três cigarros e por aí vai. Agora no inverno, a situação piora. A escassez de chuvas e de ventos torna mais difícil a dispersão dos poluentes.
* Médias de 2011. Não há dados disponíveis sobre o volume de partículas inaláveis em Itaquera, Butantã e Santo Amaro, nem sobre a quantidade de ozônio em Cerqueira César, Congonhas e Santo Amaro
Além do mal-estar instantâneo causado por tal exposição — irritação nos olhos, boca seca, nariz entupido e garganta ardendo —, há efeitos mais sérios para o corpo humano, como o agravamento de doenças cardiovasculares, que podem levar a infartos e derrames, e respiratórias, como a asma e a bronquite. Também já há estudos que mostram o impacto dos compostos na fertilidade masculina. Diante de tudo isso, acredita-se que a poluição pode reduzir a expectativa de vida em um ano e meio e ser a causa de vinte mortes diárias na região metropolitana. Somadas, as perdas financeiras com internações e redução da produtividade no trabalho chegariam a 1,5 bilhão de dólares por ano. “Trata-se de uma situação de emergência”, afirma o ambientalista Carlos Alberto Bocuhy, membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). “Mas é possível reverter esse cenário, o que depende, sobretudo, de vontade política.”
Não há solução num passe de mágica, mas olhar para o passado pode ser um bom incentivo para agir. “Em 1997, o volume de partículas inaláveis ultrapassou o limite aceitável 162 vezes. Em 2009, apenas uma vez, e no ano passado, duas vezes”, compara Maria Helena Martins, gerente da divisão de qualidade do ar da Cetesb, a empresa de saneamento ambiental do governo do estado. O grande marco para tais reduções foi a criação do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), em 1986, que estabeleceu metas de redução das substâncias liberadas pelos automóveis. Graças a ele, as montadoras viram-se obrigadas a produzir motores mais modernos, catalisadores e filtros, entre outras tecnologias de redução das emissões.
Ao mesmo tempo, a Petrobras começou a distribuir combustíveis de melhor qualidade para se adequar às novidades. O Proconve também abriu as portas para outra medida fundamental na melhoria da qualidade do ar, implementada em 2008: a inspeção veicular, que passou a averiguar se a frota paulistana (só de carros circulantes, são 3,5 milhões) estava de acordo com os limites estabelecidos. Para dar uma ideia da sua importância, um estudo realizado pelo Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da USP concluiu que a vistoria dos 120.000 veículos a diesel realizada em 2010 teria evitado naquele ano 252 mortes. “Os efeitos equivalem à retirada de 1 milhão de carros de passeios antigos das ruas”, acredita o consultor Gabriel Murgel Branco, um dos responsáveis pelo trabalho.
A questão é que tanto o Proconve quanto a inspeção ainda têm algumas falhas. Não há, por exemplo, continuidade na fiscalização depois que o veículo é aprovado na vistoria anual. “Isso dá brechas para que motoristas mal-intencionados instalem catalisadores nos carros só para passar no teste e depois removam a peça”, diz Branco. Além disso, os filtros das motos, em geral, são projetados para percursos de até 30.000 quilômetros, um terço do que os motoboys, segundo seu sindicato, chegam a completar a cada ano. Se eles fazem a inspeção antes de percorrer essa distância, são aprovados, mas logo seus motores se tornam inadequados e começam a liberar fumaça nas ruas.
Outra limitação é que, por enquanto, só são submetidos à prova os automóveis emplacados na capital, e não aqueles que vêm de fora mas circulam pela cidade. Um projeto do governo estadual que amplia o teste para todo o estado foi criado há quase dois anos. Atualmente, no entanto, está parado na Assembleia Legislativa. Para piorar, adiou-se a chance de reduzir ainda mais a toxicidade das emissões. Uma resolução do Conama previa que, a partir de janeiro de 2009, o diesel usado em caminhões e ônibus teria menos enxofre. Um acordo entre o Ministério Público e os governos federal e estadual, dois meses antes de a medida entrar em vigor, postergou a novidade para 2012.
O controle efetivo das emissões também depende das medições realizadas e dos parâmetros estabelecidos para cada um dos poluentes. Só assim é possível saber quanto de cada substância há na atmosfera e qual é a quantidade segura. Nesse quesito, estamos longe do cenário ideal. A Cetesb mantém espalhados pela cidade apenas 21 aparelhos de medição. “É muito pouco para fornecer um retrato fiel de uma metrópole com as dimensões da nossa”, afirma Bocuhy. A poeira fina chamada de MP2,5 (cuja espessura é de um vigésimo de fio de cabelo e, por isso, chega facilmente aos vasos sanguíneos pelo sistema respiratório) é medida só em três lugares.
Além disso, para quase todas as substâncias nocivas, nossos padrões de alerta são mais frouxos do que os usados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Enquanto aqui se tomam como preocupantes quantidades de ozônio acima de 160 microgramas por metro cúbico, por exemplo, para a OMS o máximo desejado é de 100. A adoção dos parâmetros internacionais em todo o estado, em discussão desde 2008, foi enfim aprovada em maio pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e deverá entrar em vigor neste ano. Ainda assim, uma lacuna permanece: a Cetesb não faz avaliações sistemáticas de componentes resultantes da queima do etanol, como os aldeídos. “De que adianta mudar a matriz energética e continuar a medir somente o que surge da gasolina e do diesel?”, questiona Bocuhy.
Não existe também um índice que combine todas as variáveis que interferem na qualidade do ar que respiramos. “Sabemos apenas se o ar está seco ou úmido, quente ou frio, muito ou pouco poluído, mas não como a combinação de tudo isso influencia nossa saúde”, diz a meteorologista Micheline Coelho, pós-doutoranda da Faculdade de Medicina da USP. Para organizar os vários indicativos, ela trabalha na criação de um modelo matemático que aponte em que medida o teor de poluentes associado às condições climáticas do dia pode agravar doenças cardiovasculares e respiratórias. “Com essa ferramenta, poderemos alertar a população antes de as condições piorarem”, explica.
Ela já sabe, por exemplo, que, nos dias em que a temperatura fica abaixo de 17 graus e as concentrações de material particulado (MP10) superam 56 microgramas por metro cúbico, as internações por asma aumentam 33% na cidade. Mas o quadro passa despercebido. Nos parâmetros atuais da Cetesb, essa taxa se enquadraria no padrão “aceitável”. Somente a partir de 150 microgramas a substância é tida como fora de controle.
As medidas mais eficientes para aliviar os pulmões paulistanos vão além dos ajustes de padronização e do controle de emissões. Ampliação de áreas verdes e investimentos agressivos em transporte público estão entre as ações mais certeiras. Cidades mundo afora, como a canadense Calgary, tiveram melhoras substanciais ao ampliar a oferta de trens e substituir o diesel de sua frota de ônibus por uma versão com menos enxofre. Cidades altamente poluídas como Pequim apostam em caminhos parecidos. São Paulo, por sua vez, está longe de oferecer um transporte coletivo que incentive o cidadão a deixar o carro na garagem — ao fazer isso e tomar um ônibus, ele reduz para um décimo o impacto ambiental provocado pelo automóvel no trajeto. Ainda que nada simples, soluções como essa estão, assim como os poluentes, logo abaixo do nosso nariz.
PRINCIPAIS POLUENTES QUE AFETAM A METRÓPOLE
Partículas inaláveis (MP10)Resultam da queima de combustíveis de indústrias e de automóveis com motor desregulado. Há também uma variante mais fina (MP2,5), que chega até os vasos sanguíneos.Limite tolerado*: 50 μg/m3
Situação atual**: 89 μg/m3Ozônio (O3)Um dos elementos com maior potencial nocivo, forma-se pela reação do sol com substâncias como o dióxido de nitrogênio, solventes evaporados e combustíveis não queimados totalmente.Limite tolerado: 100 μg/m3
Situação atual: 115 μg/m3Dióxido de nitrogênio (NO2)Forma-se por meio de processos de combustão de veículos, indústrias e usinas térmicas. Altamente lesivo, contribui para o surgimento da chuva ácida e do ozônio.Limite tolerado: 142 μg/m3
Situação atual: 200 μg/m3Monóxido de carbono (CO)Incolor e sem cheiro, resulta principalmente da combustão incompleta de motores automotivos. Seus índices eram mais altos até os anos 80, quando os carros não tinham tecnologia de controle ambiental.Limite tolerado: 3,4 ppm
Situação atual: 9 ppmDióxido de enxofre (SO2)Seu cheiro lembra o do gás produzido por um palito de fósforo. Surge através da queima de óleo e diesel e pode provocar a formação de chuva ácida. Limite tolerado: 11,5 μg/m3
Situação atual: 20 μg/m3* Estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS)**Segundo medição da Cetesb realizada entre os dias 11 e 17 de julho
OS VILÕES DA POLUIÇÃO
Quase todo o volume de gases nocivos liberados na cidade vem do trânsito*
Veículos de passeio - 58,1%
Nossa frota circulante atual, estimada em cerca de 3,5 milhões de carros, é a grande responsável pela degradação do ar. A situação era ainda pior até 1986, quando as montadoras foram obrigadas a instalar catalisadores e filtros nos automóveis. A inspeção veicular ambiental, implantada em 2008, também é positiva — a liberação de monóxido de carbono caiu pela metade. Mesmo assim, enquanto o trânsito mantiver suas proporções colossais de lentidão, a cidade continuará longe de virar esse jogo